Financiamento público, ‘distritão’ e aberrações do nosso sistema eleitoral

Toninho

Um dos debates mais longos e inconclusos é o que trata da reforma política. Que o nosso sistema é confuso, incoerente, recheado de distorções, contaminado pela corrupção, partidos que nada ou pouco representam e eleitos com baixíssima qualidade, poucos discordam. É quase unanimidade a necessidade urgente de mudanças. Mas o que implementar para substituir o atual sistema é o grande problema: entre imediatistas que visam somente as próximas eleições e a sobrevivência política, e os que idealizam um sistema representativo moderno que atenda as demandas da população por transparência e autenticidade, há um mar imenso de possibilidades e conflitos entre interesses vários. E na ausência de consensos mais arrojados e estruturais, o nosso sistema eleitoral vai sendo submetido a remendos de tempos em tempos para atender às aflições circunstanciais. E quase sempre, prevalecem a velhacaria e a lógica do corporativismo da classe política dominante, que olha para o umbigo da reeleição mesmo que seja preciso golpear a democracia, a representação e o interesse geral. Tem sido assim por décadas, e tudo leva a crer que assim permanecerá por um bom período.

No Brasil, ensina a nossa história, reformas políticas mais amplas e estruturais precisam ser conduzidas pelo poder executivo, que detém poderes e instrumentos para conduzir o processo junto ao Congresso Nacional e blindá-lo contra a mesquinhez, sempre muito bem sedimentada e ágil. Ocorre que o presidente Fernando Henrique venceu sob a plataforma ‘parlamentarista’ do programa tucano e simplesmente o ignorou. Optou pelo imediatismo da reeleição, e com ela as distorções que já eram grandes aumentaram. Lula venceu com enorme prestígio e popularidade. Não mudou nada, o sistema eleitoral continuou com suas incoerências e deficiências, e foi ainda mais degradado pelos desmandos do ‘mensalão’. Bolsonaro afastou-se dos políticos e dos partidos, e com discurso de mudança radical do sistema ganhou como o ‘antipolítico’ ou ‘antisistema’. Acabou nos braços do ‘centrão’, o mesmo do ‘mensalão’ de Lula e da reeleição de FHC, e abraçado ao tronco do negacionismo inconsequente.

Na ausência de vontade política para uma reforma que possa de fato mudar algo para melhor, os arranjos e puxadinhos permaneceram e continuam.

Uma dessas providências foi a adoção do financiamento público. Acossada pela opinião pública estarrecida com as denúncias de corrupção da ‘operação lava-jato’, a classe política logo deu um jeitinho para contornar as coisas, pelo menos na aparência: nas eleições, o financiamento privado pelas empresas seria proibido e substituído pelo financiamento com dinheiro público. Mudava-se apenas a fonte dos recursos, mas o modus operandi permanecia intocável e foi piorado ainda mais pela nova prática. Por si só o financiamento público é escandaloso, uma aberração.

Em termos éticos e conceituais, como justificar o uso de dinheiro público para bancar projetos pessoais de candidatos aqui e acolá e de cúpulas partidárias que não passam de ‘grupos de interesse’ sem qualquer representatividade popular? Há muito os nossos partidos estão desmoralizados e as 35 legendas existentes atualmente não passam de uma ‘sopa de letrinhas’. Insignificantes para a sociedade, os partidos contemporâneos são meras estruturas burocráticas e cartoriais para amealhar recursos públicos e manobrar candidaturas, acordos e coligações, sem transparência ou coerência. Um sistema frouxo, no qual quem perde hoje vira governo amanhã, numa lógica de barganhas bizarras, e assim vai. Se um partido não dá o que determinado parlamentar quer, ele muda de legenda num troca-troca desenfreado… enfim, um sistema partidário inócuo e desacreditado que não atende ninguém a não ser seus próprios membros.

Para se ter a dimensão dos recursos envolvidos no financiamento público, nas eleições gerais de 2018 os partidos receberam R$ 1,7 bilhão destinados ao Fundo Especial de Campanhas Eleitorais e mais R$ 900 milhões repassados ao Fundo Partidário, para a manutenção de suas atividades (aluguéis, funcionários, veículos, divulgação, consultorias, pesquisas etc). Como o Fundo Partidário é anual a estimativa para os cinco anos até as eleições gerais de 2022 é de R$ 4 bilhões em repasses aos partidos brasileiros. Somados aos R$ 1,7 repassados ao Fundo Eleitoral de 2018 e de pelo menos outros R$ 4 bilhões que deverão ser gastos em 2022 (fala-se em R$ 5,7 bilhões), o orçamento da União gastará um total estimado de R$ 9,7 bilhões neste curto período (média de quase R$ 2 bilhões anuais). Esta cifra astronômica para ‘bancar’ partidos políticos e candidaturas aleatórias, de incontáveis desconhecidos e aventureiros. Num país onde 104 milhões de brasileiros vivem com apenas R4 413,00 mensais, e falta tudo, de saneamento básico a segurança, escolas e hospitais, e que o desemprego e subemprego assombram milhões famílias de norte a sul. Um escárnio!

E a jogatina político-eleitoral não para aí. Além dos Fundos, a classe política manteve a doação para pessoas físicas até o limite de 10% das suas rendas. Assim, os ricos doam milhões para si mesmos e bancam suas campanhas num jogo completamente desigual. Por que não adotar um valor único igual e fechado para estas doações? Mas fazer o certo é complicado, e na maioria das vezes tem prevalecido o inverso, as acrobacias e os malabarismos tupiniquins.

Seria bem mais fácil e econômico para os contribuintes elaborar uma legislação para regular eventuais contribuições privadas, sem a excrescência do financiamento público. Bastaria limitar o valor da doação pelas empresas não considerando o tamanho delas. As grandes, médias e pequenas empresas poderiam doar até o mesmo teto, para um, dois ou três candidatos apenas. Empresas que prestassem serviços para governos municipais, estaduais e federais estariam impedidas de doar. As que doassem, ficariam impedidas de prestar serviços públicos por um ou dois anos. Enfim, bastariam regras claras e transparentes para dar um fim aos desvios e escândalos desnudados na ‘lava-jato’. Mas para arrecadar fundos privados neste cenário extremamente limitado e regrado os candidatos precisariam ter credibilidade, propostas coerentes, postura ética e capacidade de articulação, coisas raras hoje em dia.

Ao invés de valorizar a capacidade de trabalho e a boa ação política, preferiram o caminho mais fácil, o de abocanhar o orçamento da nação para financiar seus projetos pessoais através dos Fundos públicos: o dinheiro chega fácil e basta apenas ser amigo dos ‘chefões’ dos partidos. E até para garantir uma cota mínima independente das cúpulas partidárias, os deputados federais e senadores criaram em lei o direito a financiamento público automático. Outra violência porque privilegia quem está no exercício do mandato em detrimento dos inúmeros candidatos que disputam pela primeira vez ou que não tem mandato eleitoral. Sem contar, ainda, que os parlamentares contam com estruturas custeadas com dinheiro público – gabinete, funcionários, ajuda de custo, verbas funcionais etc. Uma quebra vergonhosa do equilíbrio nas disputas.

Agora o Congresso Nacional prepara-se para votar mais uma ‘reforma’ política. Como das outras vezes, nada de substancial mudará, apenas o que interessa aos parlamentares e seus projetos imediatos e/ou midiáticos. Tratar da qualidade da representação popular ninguém se aventura. Os Fundos Partidário e Eleitoral permanecerão intactos – e possivelmente receberão vultuosos recursos, o caciquismo nos partidos ficará inalterado para o manejo seguro dos recursos públicos, os chamados partidos nanicos continuarão existindo e recebendo recursos – mesmo sem votos nas urnas.

A novidade agora é a adoção do que se convencionou a chamar ‘distritão’, mais um ‘puxadinho’ no emaranhado do já confuso sistema. Inspirado no sistema distrital clássico presente nas democracias mais evoluídas do planeta, a proposta é mais uma invenção tropical. No sistema distrital clássico os estados são divididos em regiões (distritos) que elegem seus representantes, os mais votados (majoritários). Assim, a identificação do eleitor com os candidatos fica mais forte e as demandas ganham melhor visibilidade. Os políticos precisam ser mais eficientes, porque a proximidade com o tecido social e a clareza das reivindicações fazem as cobranças por resultados serem mais intensas. Sem nenhum compromisso com estas vantagens do sistema clássico, o ‘distritão’ pinça apenas o princípio majoritário e o estende ao estado como um único e grande distrito – ‘distritão’ -, considerando-se eleitos os mais votados em ordem decrescente.

No ‘distritão’ o individualismo exacerbado será a tônica, e institucionalizado. Cada um cuidará de si. Os partidos como lócus das legendas, da proporcionalidade, das minorias, do conjunto programático e da representação de segmentos simplesmente acabam. Passam a ser oficialmente instrumentos de caixa para manejo dos fundos públicos. E só. E mais uma vez o sistema se afundará no emaranhado de jeitinhos que só atendem aos anseios de manutenção do status quo dos que hoje têm mandato e pretendem perpetuar-se, dificultando as mudanças reclamadas pela população. É uma tentativa grotesca de ‘mudar para ficar tudo do jeito que está’ abafando a indignação das pessoas que certamente varreria do poder boa parte dos que manobram estas ‘reformas’. Desavisados – apostam os parlamentares, os eleitores comparecerão às urnas para votar sem se dar conta de que o sistema está contaminado e o jogo decidido. Ledo engano!

Não à toa a política perde espaço, credibilidade. A decepção aumenta em ritmo avassalador. E desencantado com eleições que pouco representam os seus desejos de mudanças e transformações, a abstenção cresce e, também, os votos brancos e nulos.

Diz um velho adágio popular que ‘a esperteza quando é muita cresce, vira bicho e engole a gente’. Não percebe a classe política que sem legitimidade há um descolamento contínuo da realidade, ao ponto de hoje os próprios políticos terem vergonha de se apresentarem como tal em público, temerem constantemente as vaias, não andarem nas ruas e se esconderem em redes sociais onde não há diálogo nem o ‘cara a cara’. E cada vez mais a política institucionalizada perde espaço para movimentos e iniciativas sociais desvinculados de partidos e políticos, itens considerados descartáveis por boa parte dos cidadãos.

Com tamanhas aberrações, o nosso sistema político-eleitoral caminha para o desastre da insignificância, e nesse caminho, corre ainda o risco de atropelamento quando a população – já irritada, desconfiada, sofrida e descrente – decidir dar um basta geral.