Inadimplência: mais de um terço dos mineiros começaram o ano endividados, aponta pesquisa

Depois de um ano de pandemia, administrar e manter o equilíbrio entre as contas de água, luz, condomínio, aluguel, combustível e até mesmo o sagrado arroz com feijão têm sido um desafio e tanto para grande parte dos brasileiros que viu a fonte de renda ser comprometida e a inflação só aumentar. Não por acaso, o percentual de endividados no país chegou ao maior patamar em 11 anos em 2020, segundo um estudo da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). Atualmente, 61,4 milhões de brasileiros possuem alguma conta em aberto, de acordo com a Serasa. Em Minas, 35,4% da população terminou o ano inadimplente.

Se, no início da pandemia, o auxílio emergencial e a prorrogação de prazos de pagamentos pelos bancos e pelas empresas impediram uma explosão de inadimplentes, segundo os economistas, a possível redução do benefício somada a alta dos preços dos alimentos e do combustível nos últimos meses prometem um 2021 ainda mais assustador.

As projeções entre os especialistas é de aumento do número de endividados e de desempregados no país.  Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o desemprego alcançou 13,4 milhões de pessoas no último ano.

Esse é o caso da analista de produção, Ana Martins, 43. Demitida em maio do ano passado, até hoje ela ainda não conseguiu uma recolocação no mercado de trabalho. Além da pouca oferta, as dívidas têm dificultado os processos seletivos. “Fui informada de forma ‘extra-oficial’ em três empresas que não contratam quem está com ‘nome sujo'”, conta ela, que já acumula débitos no valor de R$ 20 mil desde a demissão. Ela até tentou se candidatar para receber o auxílio emergência, mas não conseguiu.

“Nunca passei por um período de falta financeira e falta de perspectiva como agora. Sou mãe, filha, esposa e me sinto impotente por não poder proporcionar o mínimo que eu sempre proporcionei. Fora que é extremamente desgastante e angustiante a quantidade de ligações de cobrança. Me tratam como se eu não quisesse pagar, ao invés de não poder pagar agora. No começo me sentia desonesta, como se eu estivesse muito errada em dever. Hoje aprendi a respirar e respeitar o momento que eu não plantei”, desabafa a analista.

“Aluguel, luz e água têm sido pagos em dia. A internet tem andado atrasada, mas também pagamos antes de cortar. Porém deixei de comprar muita coisa de supermercado, não comemos carne vermelha”, afirma.

Assim como Ana, mais de 60% da população começou o ano endividada. Desse total, quase 11% estão sem condições de quitar as dívidas. Segundo a Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), divulgada no último mês, o percentual de famílias com dívidas voltou a subir e chegou a 66,5% em janeiro, superando a taxa de dezembro (66,3%).

Segundo o estudo, o tempo médio de comprometimento das famílias com dívidas no país foi de 7,2 meses, acima dos 6,9 meses no ano anterior. A alta coincide com o fim do pagamento do auxílio emergencial e com o agravamento da pandemia de Covid-19 no país.

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) até já declarou que o benefício deve ser retomado, mas com valores menores, entre R$ 175 e R$ 375. No entanto, os sinais do agravamento da crise já começaram a aparecer, de acordo com o economista-chefe da Serasa Experian, Luiz Rabi. A inadimplência no pagamento de serviços básicos, como água e luz, bateu recorde em dezembro. Segundo a Serasa, o percentual foi de 23,6%, maior valor de toda a série histórica iniciada em janeiro de 2018.

“Em um primeiro momento, o auxílio fez com que a inadimplência caísse. Claro que os bancos reduziram as taxas de juros e se mostraram mais dispostos a negociar dívidas, mas o benefício do governo federal foi de longe o principal aliado. Mas agora a tendência é que tenhamos uma situação muito complicada. O auxílio acabou, mesmo que volte é um valor muito menor e para menos pessoas, não é algo imediato. O  impacto é muito grande, é um dinheiro que deixou de entrar para a economia circular. Somado a isso temos uma economia patinando e juros subindo”, pontuou Rabi.

Entre outros pontos, o texto da Pec emergencial disponibiliza R$ 44 bilhões fora do teto de gastos ao governo federal para pagar uma nova rodada do auxílio emergencial, além de impor mais rigidez para a aplicação de medidas de contenção fiscal, controle de despesas com pessoal e redução de incentivos tributários. No ano passado, a maior parte das despesas executadas pelo governo para contenção da pandemia destinou-se justamente ao pagamento do auxílio emergencial – primeiro com valor de R$ 600 e, a partir de setembro, com R$ 300. A estimativa é que mais de 66 milhões de pessoas receberam diretamente o auxílio.

“O valor que está sendo discutido agora é 15% do ano passado, a  situação do emprego não voltou. Já estamos em sinal de alerta do que irá acontecer. Desde o fim do auxílio, já se percebeu um aumento da inadimplência com atrasos na conta de telefone, crediário, além de água e luz. As pessoas tentam preservar ao máximo o crédito bancário, então,  atrasam primeiro essas contas”, completa o economista da Serasa.

Para o educador financeiro Sandro Borges, a situação irá se estender e será agravada ainda pelo atraso e as incertezas quanto ao rumo da vacinação no país. “No ano passado, muitas empresas reduziram as jornadas de trabalho e evitaram demissões. Esse ano não temos nada disso. A economia não vai crescer, a situação será caótica. Estamos vendo gente com dificuldade até de se alimentar. Antes, as pessoas podiam fazer uma renda extra, vendendo um bolo, um salgado para complementar a renda, agora nem isso. Vai vender para quem com as cidades fechadas?”, questiona Borges. “Temos endividamento de todas as classes e de todas as idades”, pondera.

Essa, inclusive, é a luta do aposentado José Marques, 83: equilibrar as finanças. Somente com os remédios da esposa e os seus somados aos gastos de alimentação, 65% da renda fica comprometida. Isso sem contar as outras despesas e o condomínio, que tem um valor variável e dificulta ainda mais o planejamento. “A gente trabalha a vida toda e não tem paz nem depois de velho. Preciso que meus filhos me ajudem, eu tenho vergonha de não dar conta de me sustentar”, confessa o aposentado que pretende recorrer a um empréstimo.

Na última semana, a Câmara dos Deputados aprovou a medida provisória que aumenta, de 35% para 40%, a margem para empréstimo consignado de servidores públicos, ativos e inativos, militares e aposentados e pensionistas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). “Nunca precisei disso, mas a aposentadoria é a mesma e tudo só aumenta o preço. Já cortei tudo que eu podia. Agora, só se eu parar de comer e comprar remédio”, brinca.

Fonte: O Tempo