Muito se especula acerca dos impactos da internet e das redes sociais no funcionamento do sistema democrático. Com a avassaladora imposição do mundo virtual novos ingredientes surgem no cenário, como a disseminação das fake news nas redes sociais como ferramenta nas campanhas eleitorais, e até nas publicidades oficiais. É apenas um exemplo. Estaria a velha democracia tradicional sendo mesmo esvaziada, perdendo credibilidade junto à população? Os regimes autoritários estariam ganhando campo? Esse é um dos alvos de estudos da Neopolítica, que busca reinventar a política conforme as exigências dos novos tempos.
Na verdade, este processo de desprestigio do modelo vem de longa data, e os questionamentos sobre a eficácia do sistema democrático caracterizado pelos partidos e a representação eleitoral crescem a passos largos. A internet e as redes sociais trouxeram novos ingredientes, altamente complexos, enfraquecendo ainda mais o formato que conhecemos. O surgimento de um novo modelo de cidadania abalou todas as estruturas que conhecemos: o cidadão.com.
O regime democrático atual foi erigido ao longo dos últimos séculos. Com raízes e fundamentos que remontam à Magna Carta inglesa de 1215 e também sua Revolução Gloriosa de 1688, à Revolução Francesa de 1789 e ao processo de construção política da sociedade americana a partir de sua independência em 1776, o velho sistema democrático assim concebido está sendo desmontado – mesmo que involuntariamente – pelas novas tecnologias da informação, e com ela, a antiga política.
A sociedade atual (pós-moderna) é impactada pelo poder crescente da internet, dos smartphones e das redes sociais, que alteram comportamentos de conduta, de serviços, das relações interpessoais, econômicas, trabalhistas, comerciais, educacionais, entretenimento e tantas outras atividades. E ainda dotam os indivíduos de instrumentos comunicacionais e de acesso à informação como nunca antes se observou na história da humanidade. Deu forma ao cidadão.com que atua desenvolto por estes novos ambientes cibernéticos exigindo também transformações das práticas políticas e governamentais.
A instantaneidade, a elevadíssima concentração, a rapidez imensurável de dados transmitidos e decodificados e a ausência de fronteiras no mundo virtual transformaram a maneira coletiva de convivência das pessoas. Ferimento mortal que fragiliza as bases de organização social sobre e para as quais a democracia como regime político foi edificado.
A excessiva fragmentação das referências ideológicas, morais, religiosas, sociológicas, psicológicas e científicas, e o consequente afloramento das diferentes visões de mundo entre os indivíduos, e o protagonismo dos cidadãos no mundo virtual se sobrepôs às limitações do mundo real. Vivemos um estado de impermanência social com o qual o sistema democrático não está preparado para lidar. Um novo mundo se descortina, o da ‘sociedade liquida’ tão bem observada por Zigmund Bauman, e cada vez mais o sistema democrático tradicional revela-se insuficiente para abarcar as complexidades surgidas.
A predominância do mundo virtual sobre o real no campo da divulgação e disseminação das ideias nos mais variados campos de atuação humana favorece os movimentos informais e efémeros poderosos. Eles brotam e se desfazem com grande rapidez, e alteram o ambiente político determinando até mesmo o resultado de eleições ou ações de governo, provocando consequências duradouras – para o bem ou para o mal. E debilitam os governantes e suas plataformas. Esses movimentos, aliados ao forte protagonismo individual e as traquinagens das fakes news, tornam obsoletos as engrenagens políticas dos partidos e da própria representação política como conhecemos. A política deixa o campo tradicional, ritualístico e estrutural, e migra o ambiente virtual, passando a ser reprodução desses recortes momentâneos. Os programas e plataformas tutelados institucionalmente ou a velha prática dos compromissos consolidados de grupos ou instituições permanentes – os partidos, entidades ou trajetórias de vida – perdem sentido. O imediatismo como fenômeno político se agiganta para dominar de vez a cena!
As barreiras e limitações sociais e econômicas da vida real, as dificuldades de mobilização nas ruas, a lentidão dos processos convencionais de argumentação, de decisão ou de construção de projetos estão levando o exercício da cidadania para o espaço virtual. Nele, a igualdade se impõe imediatamente ignorando origens, raça, credo, condições econômicas, regiões, sexo, trabalho ou qualquer outra referência. O engajamento político nas redes sociais se sobrepõe às identidades partidárias costumeiras e aos seus líderes.
A virtualidade oferta um campo neutro e sem limites de qualquer natureza para sua ocupação, com suas próprias dinâmicas de utilização. E para agravar ainda mais o quadro, sem regras ou normas, esse novo espaço público está em constante mutação. Turbinado pelas novas tecnologias, que evoluem em profusão, os espaços virtuais inibem ou praticamente anulam certos aspectos das condições reais de vida. E uma de suas principais vítimas é a política formal na qual a democracia ocidental foi construída e ainda se sustenta.
Como manter os cidadãos vinculados a um mundo político formal e real inerte, quando esses mesmos indivíduos se fortalecem como cidadãos virtuais (cidadão.com), quase apátridas, num ambiente livre de compromissos permanentes e de lealdades ideológicas ou comportamentais? Se as redes sociais permitem a manifestação direta de todos nós, qual a necessidade de partidos e representantes eleitos? São grandes questões e desafios a serem superados pela democracia como sistema político.
Talhada para conduzir relações estáveis a partir de instituições consolidadas num ambiente de regras e de normas de condutas próprias do mundo real, o modelo democrático que conhecemos se esvai como algo supérfluo, sem efetividade ou utilidade.
A civilização humana experimenta uma verdadeira metamorfose e este novo mundo requer também um modelo diferente de política e de governo, de relação com o estado e as coisas públicas. Um grande fosso se formou entre o mundo político democrático e a sociedade virtual, favorecendo receitas autoritárias oportunistas que ‘vendem’ soluções aparentemente mais eficazes e adequadas.
Reinventar a democracia em tempos de protagonismo das vidas virtuais será a tarefa mais hercúlea no campo das ciências relacionadas à política. A vez do cidadão.com chegou para ficar!
Os primados da liberdade de expressão, a segurança para o exercício da cidadania, a definição de novas formas e procedimentos para o exercício político das pessoas, a limitação dos poderes dos governantes, a construção de espaços públicos equilibrados para debates e processos de decisões, a existência do ativismo virtual difuso e líquido, são questões que preocupam a Neopolítica neste momento de declínio do sistema democrático.
Um caminho tão complexo quanto incerto, mas inevitável.