O golpe do voto impresso auditável

Toninho

A informática entrou na vida política do país em 1986, quando a justiça eleitoral realizou o recadastramento eletrônico dos dados de 70 milhões eleitores brasileiros de todo o país. A medida pôs fim aos antigos títulos eleitorais que favoreciam as fraudes possibilitando a um mesmo eleitor votar várias vezes, e também os ‘mortos’. O folclore político brasileiro é repleto de episódios – cômicos até, se não fossem trágicos.

Com a redemocratização do país, a Constituição de 1988 resgatou os direitos e as garantias fundamentais da população, entre eles o voto direto e secreto. Acompanhando a evolução tecnológica e a luta pela democracia, o Tribunal Superior Eleitoral – TSE implantou a urna eletrônica que foi utilizada pela primeira vez nas eleições de 1996 em número reduzido de municípios. Depois, devido ao sucesso da iniciativa, foi estendido a todo o país nas eleições seguintes. Desde sua implantação até hoje o país realizou 12 eleições para presidente, governadores, prefeitos, deputados federais e estaduais, senadores e vereadores, e um referendo, todos com a urna eletrônica. Lá se vão 25 anos de uso do equipamento.

As vantagens das urnas eletrônicas em relação às cédulas eleitorais de papel estão na rapidez da compilação dos dados para a divulgação do resultado, e na segurança. No mesmo dia da eleição, terminado o processo de votação, em poucas horas a população tem conhecimento dos votos obtidos por cada candidato, e os vencedores são declarados publicamente. Todos os eleitores podem acompanhar simultaneamente a evolução da apuração em tempo real. No antigo sistema, a contagem dos votos era manual e lenta – abrindo espaços para fraudes e abusos – gerando toda sorte de inseguranças quanto à lisura do processo. E como a contagem dos votos manual se dava por milhares de mesas apuradoras (grupos de pessoas convocadas pela justiça eleitoral) espalhadas pelo país, a fiscalização era complexa e ocorria de forma pouco transparente. Tudo ficava à mercê da boa vontade dos mesários, do preparo físico e capacidade gestora dos juízes e da capacidade de arregimentação de pessoal pelos partidos para a fiscalização.

Era uma prática que pouco evoluíra, presa a muitos vícios e cacoetes da ‘velha república’ dos antigos coronéis.
O modelo de votação eletrônico surgiu na esteira do desenvolvimento tecnológico global, e cada vez mais adquire instrumentos eficazes de segurança. Num mundo em que toda a vida financeira de países, bancos e empresas é feita pelo meio eletrônico, e também o cotidiano das pessoas, através do comércio, das folhas de pagamentos, do recolhimento de impostos, da declaração de imposto de renda, educação, planos de saúde, trâmites judiciários, cartórios, previdência, emissão de certidões, passagens aéreas, estacionamento, auxílio emergencial, bolsa família, reservas de hotéis, PIX, watzapp e tantos outros itens, porque também o ato de votar e a respectiva contagem não seria?

É evidente que a segurança do processo eleitoral deva ser questão prioritária. E é. Nestes 25 anos de utilização das urnas eletrônicas nenhum resultado foi questionado por suposta fraude no sistema, e é bom lembrar que as eleições ao longo deste período envolveram milhares de candidatos, partidos, coligações e um imensurável número de interessados. Nenhum deles colocou o sistema em dúvida. Jair Bolsonaro foi eleito deputado federal por sete mandatos e chegou à presidência da República seguindo este modelo e jamais questionou a sua funcionalidade à época.

Muito se fala da possibilidade de hackers invadirem as urnas no dia da votação, mas a urna eletrônica não é vulnerável a ataques externos. Esse equipamento funciona de forma isolada, ou seja, não dispõe de qualquer mecanismo que possibilite sua conexão a redes de computadores, como a Internet. Também não é equipado com o hardware necessário para se conectar a uma rede ou mesmo qualquer forma de conexão com ou sem fio. Vale destacar que o sistema operacional Linux contido na urna é preparado pela Justiça Eleitoral de forma a não incluir nenhum mecanismo de software que permita a conexão com redes ou o acesso remoto.

Além disso, as mídias utilizadas pela Justiça Eleitoral para a preparação das urnas e gravação dos resultados são protegidas por técnicas modernas de assinatura digital. Não é possível a um atacante modificar qualquer arquivo presente nessas mídias.

Também são tomadas medidas contra possíveis tentativas de violação que possam ser feitas por pessoas que trabalham diretamente no processo eleitoral. Para isso, a Justiça Eleitoral utiliza ferramentas modernas de controle de versão do código-fonte dos sistemas eleitorais. A partir dessas ferramentas, é possível acompanhar toda modificação feita sobre o código-fonte, o que foi modificado e por quem.

O sistema eletrônico possui diversos mecanismos de auditoria e verificação dos resultados que podem ser efetuados por candidatos e coligações, pelo Ministério Público (MP) e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Além dessa possibilidade, outro mecanismo bastante simples e eficaz de verificação é a conferência do boletim de urna. Ao final da votação, o boletim com a apuração dos votos de uma seção transforma-se em documento público. O resultado de cada boletim pode ser facilmente confrontado com aquele publicado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na Internet, seja pela conferência do resultado de cada seção eleitoral, seja pela conferência do resultado da totalização final. Esse é um procedimento muito utilizado pelos candidatos, partidos políticos e coligações há muito tempo e que também pode ser feito pelo eleitor.

Se o modelo é bom, eficaz, rápido e seguro, porque o presidente Jair Bolsonaro questiona a sua lisura? Por que ele insiste na necessidade do voto impresso no papel para uma eventual verificação posterior?

A resposta é evidente: por isso mesmo! Por ser eficiente, rápido e seguro.

A proposta do voto impresso acoplado à urna eletrônica criaria um modelo híbrido – tecnológico e artesanal ao mesmo tempo – como se um comprador de uma Ferrari fosse obrigado a levar na traseira um reboque com um cavalo para o caso do veículo estragar. A parte tecnológica – o veículo, fluiria muito bem, sem problemas porque é o plano A e tudo estaria direcionado ao seu funcionamento. Mas se o carro apresentasse defeito como fazer uso do animal? Como se alimentaria? Tomaria água? Teria que haver arreios, mantas, rédeas, fenos, reservatórios de água, e recipiente para os excrementos… Inviável. Bem mais razoável ter uma boa seguradora que rebocaria o veículo para conserto com fornecimento de um outro para o motorista seguir seu caminho. É a evolução civilizatória.

Assim também é a lógica do modelo híbrido sugerido pelo presidente. Em havendo questionamentos sobre o processo eletrônico seria providenciada a contagem manual dos votos impressos em papel. O país tem 500 mil urnas eletrônicas e 148 milhões de brasileiros aptos a votar. Como no imbróglio do cavalo da Ferrari, quem faria a contagem manual dos votos?

Para a recontagem seria necessária a convocação pela justiça eleitoral de milhares de pessoas voluntárias para a tarefa. E elas teriam que se submeter a treinamentos antes das atividades. Pelo envolvimento ou opções políticas declaradas, muitos convocados poderiam ter seus nomes questionados. Novos substitutos teriam que ser encontrados, num roteiro de editais e impugnações… Seria também necessária a organização de centros de contagem de votos Brasil afora, a disponibilização de juízes e servidores para acompanhamento dos mesários, credenciamento de fiscais indicados pelos candidatos e partidos, segurança do ambiente de trabalho e das pessoas envolvidas, transportes, alimentação, enfim, toda uma complexa e gigantesca estrutura e logística.

Seriam necessários meses para que tudo fosse organizado e o resultado proferido. Era assim no passado, quando a justiça eleitoral começa a montar todo este cipoal de providências um ano antes das eleições. Hoje, em tempos cibernéticos, seria um ritual tão lento, confuso, incerto e inseguro que fatalmente todo o processo ficaria maculado e desmoralizado. E surgiriam pedidos de recontagem aqui e acolá, para votos de governadores em alguns estados, de senadores em outros. Poderiam surgir pedidos de recontagem para eleições de deputados federais e estaduais. Uma balbúrdia de recontagens que consumiria tempo e a paciência de todos. Para quê? Para não chegar a resultado nenhum porque este é o objetivo da proposta do modelo híbrido! Tumultuar e impedir que a vontade do povo seja revelada num processo rápido: o golpe do voto impresso auditável teria o efeito desejado.

Fragilizadas as eleições, desmoralizada a apuração e contagem dos votos, como ficariam os poderes? É certo que toda esta parafernália de recontagem dos votos ficaria para o pós eleições; assim, fatalmente o mandato presidencial, dos governadores, deputados federais e estaduais e senadores se expirariam antes do processo estar concluído. Ficaria a nação desgovernada? Claro que não… aí a ‘solução final’ bolsonarista seria concretizada: permaneceriam todos nos seus cargos e mandatos, até que nova eleição pudesse ser feita…Trump tentou o mesmo nos Estados Unidos, mas lá o vigor democrático de quase dois séculos e meio foi mais forte e resistiu à trama.
Um verdadeiro democrata não tem medo de eleições nem das urnas!

Se o objetivo fosse realmente a realização de eleições livres e seguras, porque não cuidar de aprimorar o atual sistema eletrônico que por 25 anos tem colaborado para a consolidação democrática do país? O debate cabível seria aquele que girasse em torno das novas técnicas de segurança, programas e sistemas que permitissem maior blindagem. Formatos eletrônicos que facilitassem a verificação ou uma auditagem mais ampla e profunda, se fosse o caso. Mas não, um sistema assim não poderia ser questionado e o perdedor não teria condições de ‘melar o jogo’ com catimbas e arruaças.

O modelo híbrido é uma mistura de informática com vara de pescar… uma bobagem enorme, que serve apenas à sanha dos que querem tumultuar o processo eleitoral antevendo a derrota que se aproxima. Curioso assistir a fraca defesa da urna eletrônica feita pelos entendidos, presa a tecnicidades e sem enxergar o óbvio. Chocante ver parlamentares e gente do alto escalão dos poderes subservientes à tresloucada proposta presidencial: seja por ignorância, interesses escusos, pelos encantos do ‘orçamento secreto’ ou ingenuidade. Assistir parcelas consideráveis do estamento político e militar dando respaldo a tamanha bizarrice é desolador.

Enfim, é o que temos!